Uma cientista boa de briga - Mayana Zatz

Fonte: Valor Econômico, por Angela Klinke, em 08/08/2014

Mayana Zatz, diretora do Centro de Pesquisas do Genoma Humano e Células-Tronco da USPO maître Rudmar Ferreira aceitou abrir o Compagnia Marinara às 11h30. Precisava ser um restaurante perto da USP e que antecipasse o expediente em meia hora. A cientista Mayana Zatz até tentou manter o combinado, mas chegou com sua barriga "negativada" só depois do meio-dia. Comer faria parte de sua rotina? "Quando não dá para sair, eu levo 'malmita' [risos]."

O corpo sequinho de seus 67 anos recém-completados está mais na conta de anos de "running". "Eu corro todo dia na rua e na vida." São tantas as causas e atribuições que um workaholic se sentiria intimidado. Ela estava ali num intervalo entre reuniões. Sua rotina tem doses cavalares de discussões científicas e políticas, aulas e aconselhamentos, viagens e papéis, papéis e papéis. "Passo quatro horas da minha jornada cuidando de burocracia. Tenho de assinar um documento para cada reagente que importo para pesquisa", diz a diretora do Centro de Pesquisas do Genoma Humano e Células-Tronco da USP.

Essa é uma de suas brigas mais antigas, até porque ela está sempre incorporando uma nova. "Por que não podemos importar reagentes como importamos livros? Somos cadastrados no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) como cientistas. Não vou trazer uma televisão para o meu vizinho."

Bastaria, diz ela, ter uma lista cadastrada na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) com reagentes comuns a várias pesquisas. A cada importação era só indicar o código do item. "A questão científica é vista no curto prazo pelos governos. Você perde dinheiro e qualquer descoberta mais competitiva. Se tenho uma ideia e estou nos EUA, no dia seguinte vou para o laboratório e testo. Aqui espero seis meses."

Com essa bandeira, ela passou a fazer parte neste ano do conselho científico da Anvisa. "Mudar as leis de importação para cientistas não vai dar prejuízo à balança comercial e ajudaria muito a pesquisa no Brasil. É uma luta que não desisti."

O perímetro de seu laboratório passa por Brasília. Ficou famosa por lá quando encampou a causa pela aprovação do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas tanto junto a parlamentares quanto no Supremo Tribunal Federal. Hoje, por conta da Anvisa e também de um projeto de células-tronco com o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia, Mayana precisa ir duas vezes por mês à capital. E mesmo monitorando o poder de perto, o que parece conquistado muitas vezes volta à estaca zero.

No começo deste ano, o governo brasileiro lançou uma portaria segundo a qual o aconselhamento genético (diagnóstico ou estratégia de tratamento e prevenção para uma doença genética) só poderia ser feito por médicos geneticistas. Desta forma, se um neurologista ou um pneumologista desconfiasse que uma criança tivesse uma doença e quisesse recomendar um teste, não poderia. "É um total absurdo. Este é um procedimento que fazemos há décadas. Não sei se queriam a reserva de mercado ou se era falta de entendimento. Existem 6 milhões de pacientes com doenças genéticas no Brasil, cerca de 3% da população, e só 160 médicos geneticistas."

A discussão foi parar no Twitter - uma ferramenta que a professora usa muito bem para a divulgação científica - e ganhou o apoio da deputada Mara Gabrilli (PSDB-SP). Depois disso, a portaria foi republicada em maio com uma emenda, desta vez permitindo que o procedimento fosse feito por uma equipe multiprofissional.

Mas Mayana quer ir mais fundo. Ela também questiona que a portaria da Agência Nacional de Saúde (ANS) obrigue os planos de saúde a cobrir os custos de testes para 29 doenças genéticas, quando existem milhares passíveis de serem diagnosticadas. "Isso é de interesse dos planos e não dos pacientes. Só geneticistas e só para algumas doenças. É aí que minha atuação não é só científica, mas precisa ser política também." O Centro de Pesquisas do Genoma Humano atende 100 mil famílias com doenças genéticas. "Com isso a gente consegue fechar diagnósticos e evitar que nasçam outras crianças afetadas. Imagine, de repente, não poder fazer mais nada disso? Tá vendo? Eu tenho de apagar incêndio o tempo todo (risos)."

Pausa para água. A conversa é caudalosa. Melhor até escolher os pratos. O Compagnia Marinara, especializado em peixes, é sempre uma opção para ela, que mora próximo, no Alto de Pinheiros. "Tem costela de tambaqui, tem hadoque", sugere o maître. Ficamos com o peixe do dia, a merluza negra. Para ela, o risoto de pupunha foi trocado por legumes. "Meus pais nunca incentivaram a gente a comer carne e, depois de uma certa idade, decidi parar."

Nascida em Tel Aviv, ela viveu na França até os 7 anos, quando se mudou com os pais para São Paulo. Fica explicado por que a cientista tem até hoje um sotaque suave, que dá ritmo à sua narrativa. O pai era engenheiro e montou uma fábrica de tecidos no Brás. A mãe, que tinha PhD em línguas, foi trabalhar com ele. "Cresci nos Jardins e depois nos mudamos para Indianópolis. Estudei no colégio Paes Leme e no Estadual São Paulo, que era muito 'top'. De lá a gente entrava na universidade direto. Era uma vergonha fazer cursinho."

Mayana não era do tipo que dissecava insetos, mas garante que desde criança se interessava por ciências. Ela achava que ia ser médica, porque queria interagir com os pacientes, mas "no científico me apaixonei pela genética e não tinha genética na medicina. Então, fui para a biologia." Na faculdade, foi aluna do professor Oswaldo Frota-Pessoa (1917-2010), autor dos livros que a encantaram na adolescência. "Tive muita sorte porque foi ele quem começou a genética-médica no Brasil e sempre me incentivou."

Desde a época de estudante participava de aconselhamento genético. Aos 20 anos, por exemplo, atendeu uma moça de 15, que vinha de uma família com vários afetados, e calculou o risco de ela desenvolver uma doença. Anos depois, a paciente apareceu no centro querendo saber se "uma tal de doutora Mayana" ainda estava viva. "A gente tinha só cinco anos de diferença, mas quando você tem 15 anos, qualquer pessoa com mais que isso é velha, né? (risos) Ela tinha a cópia do meu relatório. É assim que funciona, a gente acompanha famílias por muito tempo."

Longevidade é um dos temas a que tem se dedicado. Ela está à frente de um projeto para coletar genomas e fazer ressonância cerebral em pessoas lúcidas e saudáveis com mais de 80 anos. Um dos "investigados" há poucos dias, por exemplo, foi o escritor Ferreira Gullar. "Temos uma amostra de 1.400 pessoas, mas queremos chegar a 2.000 voluntários. Você poderia publicar, por favor, o e-mail para os interessados (80mais@gmail.com)? Com isso, vamos poder analisar o genoma todo de uma pessoa e mapear as alterações ainda não descritas que não estão associadas a risco para doenças." Além dos exames, cada entrevista dos pimpões está sendo gravada e os depoimentos serão transformados num livro.

Mayana se sente renovada também trabalhando com os jovens. Ela dá aulas de genética para o segundo ano de graduação de medicina. "Eles me fazem perguntas que eu nunca tinha pensado. Por outro lado, consigo motivá-los para coisas que eles nem imaginavam. E do ano passado para cá, mudei totalmente o conteúdo de aula. Antes eu mostrava como calcular riscos, hoje podemos fazer os exames. Cada vez a tecnologia de sequenciamento permite que a gente faça testes que não eram possíveis antes." Mas, ao mesmo tempo, surgem cada vez mais questões éticas a ser compartilhadas.

Digamos, diz ela, que uma pessoa a procure para saber se tem o gene de uma doença neuromuscular, uma de suas frentes de pesquisa - ela fundou a Associação Brasileira de Distrofia Muscular nos anos 80. Com o avanço tecnológico, ela pode investigar o genoma e descobrir que a paciente tem um gene para o câncer de mama. E aí? "Conto ou não conto? Não foi isso que ela foi investigar. Se for uma mulher de 30 anos, talvez seja importante contar. Mas, e se for uma menina de 15? Aí você diria 'Não, para a menina, não'. E se ela herdou da mãe? Se não conto, não posso testar a mãe e se não testo a mãe, ela corre o risco de ficar órfã."

Outro caso exemplar foi um casal em que a filha apresentava uma doença genética que, normalmente, não seria hereditária - mas, quando é, o pai é o transmissor. "Ele era apegadíssimo à menina, já estava morrendo de culpa. Mas, quando fizemos o exame de sangue, descobrimos que o pai não era o pai. E aí?" Ela compartilhou esse episódio, uma vez, num debate com advogados. "Eles me disseram que eu poderia ser processada nas duas situações, se contasse ou não contasse. Pela mãe, por ter revelado o segredo, e pelo pai, que poderia alegar que deixou de ter outros filhos por medo de transmitir a doença." O dilema ficou restrito à família. O casal não voltou a procurá-la.

Os episódios não só animam as aulas da moçada, como se transformaram no livro "Genética - Escolhas que Nossos Avós Não Faziam" (Ed. Globo). Ela o lançou em 2011, antes que ganhasse o noticiário, por exemplo, a decisão da atriz americana Angelina Jolie de retirar as mamas preventivamente, após descobrir ter o mesmo gene de câncer que matara precocemente a avó e a mãe. "Foi uma loucura, todas as mulheres querendo fazer o exame. Só quem tem histórico familiar repetido e precoce deve fazer o exame genético. Em geral, o risco de qualquer mulher ter câncer é de 10%. E só de 5% a 10% são hereditários."

Os peixes surgem na nossa frente. "Eu gosto da forma como eles apresentam os pratos aqui." Sua merluza com legumes parece uma escolha light recorrente. "Adoro queijo e, se pudesse, comeria tudo gratinado", diz ela, rindo. Outra ousadia são os sorvetes. "É meu grande prazer gastronômico. Tem um de iogurte de limão na Stuzzi que é divino." Gosta de experimentar vários quando viaja, em especial quando pode esticar dois ou três dias dos congressos internacionais que participa. "Nunca tiro férias de 30 dias." Recentemente tem usufruído dos feriados para "amassar o neto André" - o pequeno mora em Cambridge. "Vou encontrá-lo e a minha filha, que está numa temporada em Harvard com o marido. Aí, aproveito porque colaboro com um grupo de pesquisa de lá."

É de imaginar o que essa carga de trabalho intensa significou para seus filhos, Fábio e Cintia. "Eles nunca me culparam. Mas eu vivia culpada. Se estava no trabalho, achava que estava abandonando eles. Se estava com eles, achava que estava abandonando o trabalho." Mas, garante ela, nunca foi ausente. "Tinha uma época que minha filha me chamava de Fidela (risos). Achava que eu era muito controladora. Já meu filho acha que mulher que não trabalha é folgada. Nenhum dos dois se interessou pela ciência, queriam ganhar dinheiro. Estudaram administração de empresas."

Na sua trajetória, contou com o apoio do marido, Ivo Zatz (que morreu há dois anos), engenheiro e administrador de empresas. "Foi um privilégio porque pude trabalhar muito tempo sem ganhar nada, só me dedicando às pesquisas. Não precisava me sustentar, nem pagar escola dos filhos. Do contrário, não teria feito o que fiz cientificamente."

Preconceito? "Foi a primeira pergunta que me fizeram quando ganhei o prêmio de mulheres da ciência da Unesco, em 2001. Eu disse: 'Sinto desapontá-los, mas nunca fui discriminada no Brasil'." Só nos Estados Unidos, quando fez o pós-doutorado na Universidade da Califórnia, nos anos 70. "Nunca trabalhei tanto para ser respeitada quanto naquela época. Até hoje, lá, dependendo do seu gênero, o salário é diferente. Aqui você faz o concurso e o salário é pré-fixado."

Há quem discorde, assume, mas não há uma barreira de entrada para as mulheres na carreira científica no país. "Tem até mais mulheres que homens no doutorado nesta área. O que acontece é que elas querem cuidar dos filhos depois dos 30 anos e aí já não são mais competitivas. Ter filho é uma experiência imperdível mesmo."

A nova geração está interessada em montar seu próprio negócio, conta. Ela tem um aluno que começou uma "startup" para derivar as células-tronco das células do fígado. Elas podem ser usadas tanto para testar drogas, quanto para novas linhas de pesquisas como o repovoamento de um órgão danificado. "Imagine que você tenha um problema cardíaco. Aí você tira seu coração e coloca um artificial. Ele vai ser repovoado com células novas, vai ser recauchutado. Aí, você recebe o seu original quase novo. Já existem muitas pesquisas com órgãos nesse sentido."

Enquanto pensa nos limites da ciência no futuro, também se preocupa com o ensino aqui e agora. Participou da equipe de professores que desenvolveu recentemente os kits de experiências para crianças nas áreas de biologia, física, astronomia, química e matemática. "Mais que conseguir que o MEC [Ministério da Educação e Cultura] distribua nas escolas, queremos que as crianças levem para casa, que brinquem. Que chamem os pais, os vizinhos, para ver no microscópio o que esconde uma gota de água do rio."

Ela participou de outro projeto para "semear a ciência", desta vez em parceria com o Metrô de São Paulo, que foi implantado no começo deste mês. São cartazes "bem provocadores" que passaram a ser distribuídos nas estações e terminais de ônibus. Eles trazem textos como: "Diferentes, mas semelhantes. 96% do DNA do chimpanzé é semelhante ao seu". E há um convite para que o usuário procure saber mais no link genoma.ib.usp.br. "A grande alegria de se trabalhar com ciência é que a cada pergunta respondida abre-se um leque com outras dezenas de perguntas."

É evidente que essa atuação em tantas frentes e mais de 340 trabalhos científicos publicados com 8.000 citações transformaram Mayana numa referência que muita gente quer tirar casquinha. A mais vexaminosa é a que envolve o então médico de fertilização assistida Roger Abdelmassih, hoje foragido da Justiça. "Ele divulgava que tinha na sua clínica uma tecnologia para fazer diagnósticos pré-implantação que até hoje é difícil de ser feita. Ele queria que eu fosse trabalhar com ele para usar meu nome. Mas, como eu desconfiava, era tudo mentira. Não tinha tecnologia nenhuma."

Churros com doce de leite e sorvete de iogurte, claro, foram as sobremesas escolhidas. Nesse momento de conforto com os doces, a fotógrafa Silvia Costanti quer saber. "A senhora acredita em Deus?" Quando criança, acreditava, conta ela. "Mas a ciência é contraditória com a religião. Uma não te permite questionar, outra questiona o tempo todo. Acho legal quem acredita, dá uma segurança maior. Mas, quando vejo uma família com três filhos afetados por uma doença degenerativa, penso logo o contrário: que raio de Deus é esse que deixa uma coisa dessas acontecer?"

Para ela, as pessoas têm uma visão do cientista como se ele tivesse capacidade para fazer super-homens. Como se depois da Dolly, a clonagem humana fosse um passo natural. Há outras prioridades para os pesquisadores, como a cura ou a melhora da qualidade de vida de doentes. Não se dominou ainda, por exemplo, a programação de uma célula para que ela vá até determinada região do corpo e desempenhe a função desejada. "Existem casos de mulheres que, na tentativa de rejuvenescer, injetaram células do tecido adiposo no rosto. Mas, como elas foram mal manipuladas, viraram osso."

Mayana, que lida com o longo prazo na ciência, diz que não fazer o mesmo quando pensa em si. "Nunca se sabe, né?" Mas o que ela gostaria mesmo é de trabalhar a vida inteira. "A vantagem da USP é que mesmo aposentada compulsoriamente aos 70 anos, poderia me manter no laboratório." E se amanhã tiver uma terapia capaz de recauchutar o cérebro, por que não? "A ciência é a minha paixão. A gente ganha pouco, mas se diverte (risos)." Opa! Passamos muito do tempo. Café e chá antes que ela se atrase mais. Corre, Mayana, corre.

Fique Segura: Viva intensamente, trabalhe, divirta-se, cuide da sua casa e das pessoas que você ama, mas deixe o Porto Seguro Vida Mais Mulher cuidar de você.